Uma montanha de projetos prevendo a criação de mais de cem cartórios no Rio Grande do Sul, previstos pela Justiça estadual, está parada na Assembleia Legislativa à espera de votação. Desde 2008, o Tribunal de Justiça já enviou 31 propostas ao Legislativo prevendo a criação de 103 estabelecimentos de registro civil ou de imóveis em várias cidades do Estado, que terão de ser distribuídos mediante concurso público. Nesses cinco anos, a Assembleia aprovou a criação de apenas dois cartórios no Rio Grande do Sul.
Nenhum dos 29 projetos ainda em tramitação conseguiu sequer sair da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembleia para ser votado em plenário. A maioria deles tem parecer favorável, mas constantes pedidos de vista ou de diligências acabam remetendo os processos de volta à estaca zero. No fim de cada legislatura, os projetos são automaticamente arquivados e precisam percorrer todo o caminho legislativo mais uma vez para serem analisados.
Também empacam porque o regimento da CCJ prevê que a votação no plenário da comissão seja solicitada por algum parlamentar. Se isso não ocorrer, o projeto fica no “estoque” à espera de um “desengavetamento”. “Esse assunto é complicado e não tem explicação lógica. Eu assumi [a CCJ] só este ano, mas sei que tem projetos de lei sobre cartórios esperando votação desde 2004. Muitos nem tiveram parecer dos relatores”, disse o presidente da comissão, deputado Heitor Shuch (PSB).
Dúvida sobre eficácia
O projeto mais antigo tramita desde fevereiro de 2008 e prevê a criação de um tabelionato no pequeno município de Água Santa, região norte do Estado. Em cinco anos de tramitação, ele recebeu parecer favorável duas vezes na CCJ, mas nunca foi submetido ao plenário da comissão ou tramitou em outras instâncias.
O atual relator, deputado Jorge Pozzobom (PSDB), pediu diligências para entender os critérios da proposta, o que suspendeu o processo na comissão. O parlamentar, que assumiu mandato em 2011, requereu para si a relatoria de todos os processos sobre o tema em tramitação na CCJ.
“Não sei quantas propostas estou relatando, mas devem ser umas 12 ou 15. Tenho um profundo respeito pelo Poder Judiciário, mas só porque vem da Justiça não quer dizer que não tenhamos dúvida sobre a necessidade ou eficácia do projeto”, afirmou Pozzobom. O parlamentar não oferece explicação para gostar do tema, já que não tem cartório e tampouco parentes que atuam no ramo. Também diz que nem sabe quem são os representantes legais do setor no Rio Grande do Sul e rejeitou a possibilidade de favorecimento ou lobby aos atuais donos de cartório.
Mesmo assim, Pozzobom pediu diligências em todos os processos sobre a criação de cartórios que está relatando na CCJ. Isso quer dizer que nenhum mais tramita enquanto o deputado não receber do Poder Judiciário as justificativas técnicas que embasam o pedido, que já constam do projeto de lei original. O instrumento, segundo a superintendência legislativa da Assembleia, é legítimo e não tem prazo para ser concluído.
Prefeitos são contra
O lobby contrário à criação de cartórios também tem adesão de prefeitos. No município de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, a Justiça encaminhou projeto prevendo a criação de cinco novos cartórios. A proposta, encaminhada à Assembleia no dia 14 de março de 2011, ainda aguarda parecer da Comissão de Constituição e Justiça para ir a plenário ou ser arquivado.
Duas semanas depois de chegar ao legislativo, o projeto sofreu um forte lobby contrário do prefeito da cidade, Jairo Jorge (PT). Ele defendeu junto à presidência da Assembleia o arquivamento do processo. “Mais nem sempre é menos. A abertura de novos cartórios não significa necessariamente mais rapidez no atendimento ou redução de despesas para o consumidor”, disse o prefeito.
Na reunião com o então presidente da Assembleia, o também petista Adão Villaverde, Jairo Jorge foi acompanhado pelos donos de cartórios da cidade. Segundo ele, a prefeitura não teve acesso aos estudos feitos pela Justiça para embasar o pedido e não sabe o que pode ter motivado a proposta. O prefeito de Canoas disse que os atuais cartórios oferecem um atendimento de qualidade e que os investimentos em tecnologia não recomendam a ampliação do serviço na cidade.
Fluxo moroso
O diretor de Comunicação do Tribunal de Justiça do Estado, desembargador Túlio Martins, disse que a maioria dos projetos surgiu da necessidade de aumentar a oferta de serviços, devido ao “fluxo moroso” observado nos cartórios das maiores cidades do Rio Grande do Sul. Os projetos foram baseados em estudos técnicos realizados pelas equipes especializadas do Tribunal.
Percebemos que há congestionamento na maioria das cidades e não estamos de forma nenhuma chutando um número [de cartórios]. Se não for agora, num prazo muito curto a situação vai estourar e os prejuízos à população serão inevitáveis”, afirmou.
Segundo Martins, o Tribunal está preocupado com a situação porque a instalação de um cartório, depois de autorizada pelo legislativo, ainda demora cerca de dois anos em função do concurso público e de todas as possibilidades de recursos que uma disputa dessa natureza envolve. O desembargador lamentou “a montanha” de processos à espera de votação pelo legislativo. “Compreendemos a natureza do debate e de antagonismo que muitas vezes move o legislativo, mas a necessidade existe e é urgente”, disse.
Incorreções
O Colégio Registral do Rio Grande do Sul, que representa cartórios no Estado, minimizou a questão. O vice-presidente da entidade, João Pedro Lamana Paiva, diz que não é contra a criação de novos cartórios, mas ressalvou que “algumas incorreções” nos pedidos da Justiça deveriam ser examinadas antes de passar pelo legislativo. “Dos 497 municípios gaúchos, 432 têm cartórios de registro civil. É um número absolutamente adequado, o Estado não precisa de mais estabelecimentos”, declarou.
Segundo Paiva, o setor é um dos que menos registram reclamações nos órgãos de defesa do consumidor e um dos que mais investem em tecnologia. O Colégio Registral ingressou com uma contestação no Colégio da Magistratura questionando a prerrogativa do judiciário gaúcho para criar novos cartórios, mas Paiva reconhece que o assunto “caiu no esquecimento”.
Ele citou o caso de Porto Alegre, em que a Justiça recomenda a criação de 18 novos cartórios – seis de registro de imóveis, seis tabelionatos de notas, três de registro civil e três de protestos de títulos. “Por que dobrar o número de cartórios de registro de imóveis em Porto Alegre? Para que mais seis tabelionatos de notas se a cidade já tem 14? Nós não concordamos com essa proliferação. Acho que o judiciário exagerou na maioria dos projetos”, afirmou Paiva.
Fonte: Flávio Ilha – UOL
Em 25.04.2013